Leialti minimalista.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Sorvete e chá.

Mal posso acreditar. Estou completamente atordoado, ela gritou comigo, e eu não tenho resposta. Porque, em primeiro lugar, ela nunca grita. E depois, esse frio rodopiante está percorrendo partes do meu corpo em que eu não sabia que poderia sentir frio, quanto mais frio rodopiante, é uma experiência por demasiado complexa para que eu possa senti-la e, simultaneamente, responder. Responder um grito dela.

Achei que estivesse no contrato, nós viveríamos de sorvete, de chá e nunca, jamais, em quaisquer circunstâncias, gritaríamos um com o outro. Eu não li o contrato, só assinei. Mesmo que eu quisesse, aquelas letras eram pequenas demais, eu não conseguiria. Me pergunto se ela se enxerga quebrando um contrato, talvez não. Talvez ela nunca tenha pensado em um contrato.

Quando nos conhecemos não falamos de contratos, eu ri dela, estava com a cara toda suja de sorvete, eu nunca tive muitos pudores, ri dela, mesmo sem a conhecer. Ela também riu, enfiou o sorvete na minha cara, e riu novamente. Depois do choque inicial eu ri também, não estava acostumado a outras pessoas sem pudores. O chá... ah, o chá foi o que nos restou para beber depois que já estávamos com o sorvete cobrindo todo o rosto. E nesse dia nós não gritamos um com outro em nenhum momento. No dia seguinte, tomamos sorvete, chá e não gritamos. No dia seguinte também. E no próximo. Por que haveríamos de gritar um com o outro? Discordamos de muitas coisas nos dias que se seguiram, tomamos muito sorvete e não gritamos. Por que haveríamos de gritar? Brigamos, comemos sorvete, choramos, rimos sorvete, brigamos ao comer sorvete, chegamos a brigar para comer sorvete. Mas nunca gritamos. Nos conhecemos melhor, sabíamos quais eram os sabores preferidos de sorvete um do outro, nossas brigas e discordâncias se tornaram mais sutis, nos tornamos mais tolerantes um com o outro, não sujavámos mais toda a cara, talvez só a ponta do nariz, só o lábio inferior, uma lambida e estava tudo resolvido. A bagunça se tornou sutil e cheia de pudores.

Por que, então? Se a aceito e deixo que seja como é, mesmo que eu não concorde, se passei a sujá-la apenas com o seu sabor preferido de sorvete, se só a sujo onde ela acha gostoso. A sutileza se tornou escandâlo. Está claro que o sorvete de amora é bem melhor que o céu azul, embora esse tenha uma cor muito mais agradável, e o frio da ponta das orelhas é muito mais agradável, como ela pode preferir a ponta do nariz? Escandâlo. Duas bolas de sorvete, essa é a minha resposta, a partir de hoje ela vai voltar a sentir sorvete de amora na ponta das orelhas, e eu terei o céu azul na ponta do nariz, e teremos todos os outros, em todas as partes, uma de cada vez e todas as combinações de sorvete em todas as combinações de lugares, vamos observar o escândalo de cada sutileza. E ela não vai mais gritar comigo, porque vamos voltar a viver de sorvete. E de chá.


Ai, que bagunça de texto... vou deixar a lambança bagunçando tudo aí e tentar fazer virar bagunça bonitinha, depois...

Nenhum comentário:

Sitemeter