Atravessamos, eu e ela, a linha que marca os limites entre o escandâlo e a sutileza. É como se tivéssemos percorrido um círculo passando do escândalo para o sutil e finalmente voltado ao ponto inicial que se torna algo inteiramente novo. Acontece que agora não sei mais como prosseguir e eventos inesperados estão acontecendo. Eventos inesperado inteiramente novos, como o grito que ela gritou comigo.
Em algumas culturas, tomar chá é praticamente uma doutrina, uma arte, algo a que as pessoas se dedicam. Para nós, a cerimônia do chá é algo tão sutil que é difícil compreender porque alguém passaria horas apenas bebendo chá, mas para essas pessoas, cada chá tem uma textura e um sabor diferente, eles não parecem água fervendo, se não houver toneladas de áçucar dissolvido. Estávamos então mergulhados no mais sutil dos chás, naquele que é necessário o maior grau de apreciação para desfrutar do sabor, foi então que ela gritou, as ondas sonoras se propagaram naquele oceano de sutileza fazendo-o vibrar, foi assim que eu me senti.
A questão é, eu nunca imaginei que ela fosse gritar comigo, fosse pelo motivo que fosse. Eu imaginei que viveríamos de chá, de sorvete e que não gritaríamos um com o outro. Quando nos conhecemos iniciamos a nossa própria cerimônia, a cerimônia do sorvete, tomamos chá e não gritamos um com o outro. No íntimo da minha ingenuidade, aquilo pareceu ótimo e eu tive a impressão de que a vida seria muito fácil se púdessemos prosseguir daquela maneira para sempre e, é claro, em alguma outra dimensão de possivéis ações e desenvolvimentos, nós vivemos ainda de chá, sorvete e ela nunca gritou comigo, nem gritará, em absoluto. Mas nesta dimensão, e é nesta que se encontra esta minha consciência, ela gritou comigo.
Por quê? Se percorremos todo a parte escandâlo do círculo e ela nunca gritou, por que gritou agora que já conhecemos o sutil?
A nossa cerimônia do sorvete consiste em tomar sorvete e sujar as imediações do rosto do outro com o sorvete. Fizemos isto quando nos conhecemos e pareceu uma boa idéia fazer em todos os dias que se seguiram e para sempre. Percebemos quais eram os sabores de sorvete para se tomar durante momentos alegres, os sabores para os momentos tristes, e surgiram até ocasiões bem específicas, como tomar sorvete céu azul em dias sem nuvens, percebemos também quais eram os efeitos que surtiam ao sujar a ponta do nariz ou a ponta das orelhas, percebemos as diferenças de textura do sorvete de creme e do sorvete de abacaxi com hortelã. Nossa cerimônia se tornou mais sutil e, também, mais mecânica, alguns sabores desapareceram e ela não toma mais alguns dos meus sabores preferidos, nem eu tomo alguns dos dela.
Nos discordamos de muitas coisas, mas brigamos cada vez menos. De alguma forma, me parece que nos desentendemos cada vez mais. A imagem que eu projetava dela se tornou cada vez mais nítida, de alguma forma, não parece mais necessário expor todas as minhas opiniões para ela, ela também tem uma imagem mais nítida de mim. Essas imagens criaram independência e agora não somos nos que as projetamos mais, são elas que vêm até nós para mostrar como são.
Em nossa cerimônia do sorvete, parece ter se desenvolvido de forma semelhante, antes desenvolvíamos nossa capacidade de estimular o outro, agora somos instrumentos para fazer uma série de movimentos mecânicos estipulados e que oferecem um resultado conhecido.
De alguma forma, não nos vemos mais um no outro. Antes, quando moldávamos as imagens, fazíamos alguns ajustes para que ficassem mais do nosso agrado, era brusco, mas parecia necessário, ainda estávamos percorrendo o escândalo, mas quando chegou o sutil, passamos apenas a aceitar as diferenças, embora doesse, parecia necessário.
Como prosseguir nessa segunda volta do círculo da sutileza escandalosa? O que fazem os praticantes da cerimônia do chá quando cada um dos sabores parece escandalosamente diferente do outro?
Quando eu projetava a imagem, era mais fácil me ver nela, afinal, eu é que a desenhava. Não posso mais deixar que essa imagem, que não é ela, nem o que projetava antes, se impor, terei de modificar essa imagem, quando ela vier se apresentar a mim, e ver como ela reage quando eu pinto nela os meus lugares preferidos de sorvete com os meus sabores preferidos de sorvete. E com outros, e com todas as combinações possíveis, até percorrer novamente o círculo e voltar ao ponto inicial, sendo ele um ponto novo, em que as imagens independentes interajam conosco, e não só se apresentem como são. E quando completarmos a segunda volta, que eu não nos acomodemos e encontremos logo um novo jeito de interagir com todas as novas informações e conhecimentos.
E nesta dimensão de ações e desenvolvimentos, voltaremos a viver de sorvete e não para o sorvete, como acontece nas dimensões em que ela nunca gritou comigo e nos nunca voltamos a caminhar no círculo. Ela não gritará mais comigo. E o chá, sempre há espaço para chá.
Leialti minimalista.
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Um comentário:
o primeiro ficou melhor, mesmo...
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