Leialti minimalista.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Engano #54

Este conto, como a vida, começa no amor e termina na morte. O sarcófago é um bar temático, iluminado por velas e lustres decadentes, decorado por manequins monstruosos e os drinques parecem escuridão líquida, eles também têm gosto de escuridão, enfim, um lugar ideal para se pensar em algo sombrio.
- Vou juntar um dinheiro e viajar por aí, queria ir pra Europa, mas não sei, é muito caro. Depois, quando o dinheiro acabar, vou me matar. - Carolina é uma adolescente sentimental, vinda de uma família problemática, o tipo de pessoa que sofre por todas as gaivotas que tiveram a infelicidade de conhecer o petróleo - condições ideias para se ter idéias sombrias.
- ... - Yuri é um garoto não muito diferente de Carolina, gostaria de apreciar todas as coisas na vida que são feitas com paixão, mas por outro lado, não tem muitos amigos e está por demais apavorado para dizer alguma coisa. Mas consegue erguer as sobrancelhas.
- Que foi?
- Mas cê não precisa se matar, precisa? Quero dizer, cê pode arranjar alguma forma de conseguir dinheiro enquanto viaja, é só aprender algo, malabarismo, sei lá...
- É, talvez...
Talvez não é o tipo de resposta que agrada, quando a questão a morte deliberada de uma pessoa. Por isso um pouco de preocupação se ocupou da cadeira da dita Carol, quando a mesma foi embora. A preocupação não seria tão espaçosa em circunstâncias comuns, aquele tipo de conversa não era assim tão rara, mas desta vez eles estavam viajando e a garota não estaria simplesmente voltando para casa, ela estava indo para outra cidade, supostamente iria se encontrar com a família e ir para um fim de mundo onde moram as avós e o leite de vaca.
Como é a embriaguez de uma bebida que tem gosto de escuridão? Era o que Yuri estava prestes a descobrir. Quando abriu a carteira para verificar com quanto podia contribuir para a brincadeira que a mesa estava promovendo - qualquer coisa relacionada a bebidas alcóolicas e revelações da vida sexual dos participantes - a iluminação confusa do lugar fez com que um pedaço de plástico rasgado - era uma carteira velha - se parecesse com um bilhete de suicídio. Obviamente o plástico parecia apenas papel, mas na mente desesperada do garoto as linhas já eram lidas mesmo antes da constatação do engano.
Ele tinha que sair dali imediatamente, talvez pudesse encontrá-la na rodoviária. Havia uma linha turística que percorria a estrada real que levava a várias cachoeiras, se não a encontrasse pegaria este ônibus e seguiria a estrada, perguntaria pela menina de cabelo roxo pelas cidades em que passasse, não há muitas meninas de cabelo roxo em cidades do interior. Precisaria de dinheiro, sabia desenhar um pouco, muito pouco, mas talvez conseguisse alguma coisa com isso. Seguiria os rastros deixados, cidade após cidade, dormiria em bancos, se fosse preciso, tinha de encontrar a garota dos cabelos roxos e convencê-la, ele era esse tipo de pessoa. A encontraria observando uma cachoeira, não a mais bela ou a mais bonita, mas a que tivesse uma árvore especialmente charmosa bem próxima de sua queda ou uma formação de pedras em que se pode ver um cachorrinho, apenas se observadas por um ângulo muito específico por alguém de imaginação muito fértil, ela era esse tipo de pessoa.
- Não pode se matar, eu te amo!
- Então por que não me deixa ir?
Embora parecesse um franzir comum das sobrancelhas, elas diziam "porque amo mais o amor pelo amor que sinto por você". Talvez não fosse o suficiente para entender a resposta e talvez não é agradável, principalmente quando se trata da morte deliberadamente de alguém. O garoto tentou responder de outra forma, entrou na queda da cachoeira. Ele não sabia nadar.
Tocou o plástico finalmente, seus amigos já haviam decidido o drinque que iriam tomar, constatou o engano. Na cadeira ao lado, a prévia-preocupação-agora-amor-que-se-sente-pelo-amor estava ainda sentada. Mais uma vez constatou o engano. No sarcófago não havia uma queda de cachoeira onde se matar, mas, infelizmente, era um local propício para se ter idéias sombrias. Mais um engano.

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